No primeiro teste de fogo real de Jair Bolsonaro nestas eleições, a aparição diante de jornalistas no programa Roda Viva, da TV Cultura, o eleitor ficou sem saber o que, de fato, planeja para os temas que afetam seu cotidiano o líder das pesquisas, na ausência de Lula. Que ele defende a ditadura e a tortura, odeia a esquerda (e qualquer pauta progressista e pró-direitos humanos) e quer que todos tenham o direito de usar arma de fogo, já se é sabido. É na polêmica, campo onde cresceu e apareceu, que ele brilha para sua plateia de fiéis seguidores, que nesta segunda mais uma vez mostraram sua musculatura e ajudaram a atração a ser a mais recordista de audiência entre todos os presidenciáveis. Mas, quando deixa de ser a caricatura já conhecida da Internet é que o candidato se perde e falha em apresentar propostas para melhorar a educação, a saúde e a economia. Ao que parece, recorrerá, para isso, a uma ampla rede de postos Ipiranga, expressão usada por ele para se referir a seus futuros ministros, caso eleito. Para o longevo legislador (deputado federal desde 1991), as políticas públicas parecem ser seu calcanhar de Aquiles.
Em suas respostas, Bolsonaro demonstra pouco conhecimento do Brasil real. Quando questionado, por exemplo, sobre o que fazer em relação à mortalidade infantil, que voltou a aumentar pela primeira vez desde 1990, creditou a situação ao nascimento de prematuros, algo que, de fato, é um problema, mas que está longe de responder pela complexidade do tema. Dados publicados pela Folha de S.Paulo neste mês apontam o preocupante crescimento de 12%, em um único ano, de mortes de menores de cinco anos por diarreia, doença relacionada com pobreza e falta de saneamento básico. Quando confrontado sobre o impacto das questões sanitárias nesta estatística, o candidato à presidente desconversou. “Tem um mar de problemas, tem a ver com o passado sanitário daquela pessoa, com a alimentação da mãe, um montão de coisas. Muita gestante não dá bola para sua saúde bucal ou não faz os exames do seu sistema urinário com frequência. Certos problemas advém disso e a possibilidade de prematuros aumenta assustadoramente”, respondeu.
O militar reformado também defendeu propor ao Congresso a redução da porcentagem das cotas para negros nas universidades, ignorando análises que mostram como tais ações afirmativas são positivas para o país e negando que o Brasil tenha uma dívida com a população afrodescendente por conta da escravidão, raiz da desigualdade —”Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém. Se for ver a história realmente, o português nem pisada na África, os próprios negros é que entregavam os escravos”. E afirmou que pretende investir com mais força no ensino fundamental, o mais coberto justamente por uma obrigatoriedade constitucional, quando os principais gargalos do país são os ensinos infantil (enorme falta de creches) e o médio, um limbo geralmente esquecido pelos Estados. Para a área da ciência e da tecnologia, seu posto Ipiranga seria o polêmico astronauta Marcos Pontes, criticado por passar ainda jovem para a reserva militar apenas dois anos depois de o país investir 10 milhões de dólares em sua ida à lua —foi atuar na iniciativa privada e fez até propaganda de travesseiros potencializados com a “tecnologia da Nasa”.
Na economia, mais ausência de respostas. O desemprego no campo, para ele, por exemplo, é culpa do avanço tecnológico, que extinguiu postos de trabalho. E, para ele, quem perdeu o emprego precisa se capacitar para exercer outra profissão, como se as opções fossem abundantes no interior do país.
Nestes próximos dois meses que antecedem a eleição, a campanha que levará à escolha do próximo presidente ruma, espera-se, para além da histeria das redes sociais e ganha também a vida real. É agora, quando os candidatos passam a poder falar como candidatos, que os eleitores começam a prestar atenção. E a escolha é pragmática, se baseia em como a própria vida pode mudar para melhor, afirmam os cientistas políticos. A maioria da população, aquela que ganha até dois salários mínimos, que sente mais os efeitos de uma economia em recessão e do desemprego, que depende de uma saúde pública de péssima qualidade e que têm acesso a uma educação sofrível é justamente o quinhão da população que menos confia em Bolsonaro, mesmo sem Lula nas pesquisas. Enquanto entre os que ganham até 10 salários mínimos a intenção de votos no militar reformado é de 34%, entre os que ganham até 2 salários é de 13%, aponta o último Datafolha, realizado no início do mês passado.
Ao ignorar os temas caros para a maior parte da população, Bolsonaro parece não ter entendido ainda que não concorre mais ao Legislativo, onde a polêmica rende votos. Quando encarado como candidato sério, não parece ter qualquer proposta concreta. Resta saber se ele conseguirá se manter na liderança com uma campanha baseada apenas em raiva e ódio. Pode ser que este seu discurso batido funcione e seja suficiente para levá-lo, ao menos, para o segundo turno, em uma eleição fragmentada e sem candidatos fortes e onde as previsões de analistas políticos parecem não alcançar a realidade. Mas é possível também que ele pare de crescer. Porque os problemas do Brasil real não se resolvem num posto de gasolina. E quem acorda cedo para enfrentar esta realidade sabe disso.
Por Talita Bedinelli para El País BR